Adolescentes em conflito com a lei

10/08/2019

EFEITOS DO CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE INTERNAÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado no Congresso Nacional brasileiro no ano de 1990, constitui-se como um marco legal que agregou proposições de movimentos sociais que atuavam na defesa de crianças e adolescentes a partir da concepção de que eles são sujeitos de direitos. De modo mais específico para o que interessa a esta breve discussão, adolescentes são vistos como pessoas na faixa etária de 12 a 18 anos e somente eles são passíveis de cometimento de ato infracional, ou seja, somente os adolescentes poderão transgredir as normas estabelecidas do dever jurídico, que em virtude das distinções que os cercam, não pode se caracterizar como crime. Dito de outra maneira, mesmo que os adolescentes estejam sujeitos às consequências de seus atos infracionais, eles não são passíveis de responsabilização penal.


De acordo com o Estatuto, o ato infracional refere-se a todo fato típico descrito como crime ou contravenção penal. No seu artigo 103, o ECA assim o conceitua: "Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal". Desse modo, o ato infracional é a conduta da criança e/ou do adolescente que pode ser descrita como crime ou contravenção penal, mas, pelo fato de não existir a culpa, em razão da imputabilidade penal que no Brasil somente tem início aos 18 anos de idade, não será aplicada a pena às crianças e aos adolescentes, mas apenas medidas socioeducativas. As medidas socioeducativas possuem uma finalidade pedagógica. Para o promotor de justiça Murilo José Digiácomo, essas medidas visam à reinserção social do jovem, bem como o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, e dentre elas se encontra a internação como o patamar mais severo de medida imposta ao jovem. A gravidade dessa medida assenta-se no fato de que ela abarca a privação de liberdade do jovem que cometeu certos atos que são julgados como de maior gravidade.


A internação

Em razão da internação ser tomada como a medida socioeducativa mais drástica como consequência dos atos infracionais cometidos pelos jovens, é oportuno problematizar acerca dos impactos do cumprimento de medidas socioeducativas no Centro Educacional Masculino do Piauí, bem como investigar o curso de vida e trajetória escolar de adolescentes em conflito com a Lei. Desse modo, tendo em vista as variáveis apontadas, levanta-se a seguinte questão: O que faz com que um jovem se torne infrator e outro, nas mesmas condições sociodemográficas, não se torne? Quais os efeitos do cumprimento da medida socioeducativa em jovens em conflito com a lei? O que pode a psicanálise frente ao ato infracional?


Radiografia de uma morte

Conforme constata-se, a violência interpessoal é o principal motivo pelo qual jovens de 10 a 19 anos perdem a vida precocemente no Brasil e, de modo mais específico, a cada 100 pessoas assassinadas no país, 71 são negras. Isso implica que a chance de um negro ser vítima de homicídio é 23,5% maior que a de pessoas de outras raças/cores, sendo que no Nordeste essa diferença se amplia. Por um lado, a desigualdade social constitui-se como importante fator na compreensão da radiografia do crime, tendo em vista que que os homicídios se concentram em bairros com desvantagens sociais concentradas com população majoritariamente negra, conforme destaca o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, o IPEA.

De acordo com o IPEA,

Quando considerada apenas a população jovem masculina, observamos uma dinâmica parecida, apenas com um patamar diferente, uma vez que mais de 92% dos homicídios acometem os homens. Com isso, enquanto a taxa de homicídios de jovens em 2015 era de 60,9 para cada grupo de 100 mil jovens, o mesmo indicador para os homens jovens alcançava neste ano a incrível marca de 113,6. Chama a atenção as taxas de homicídios de homens jovens nos estados de Alagoas e Sergipe que atingiram, respectivamente, 233,0 e 230,4 mortes por 100 mil homens jovens.

Como síntese dos dados apontados acima, constata-se que as vítimas fatais possuem os traços identitários de serem jovens negros do sexo masculino e com baixa escolaridade, demonstrando a força da desigualdade racial no país.


De modo mais pontual, segundo dados do Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo do Ministério dos Direitos Humanos, o Piauí possuía 198 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas motivadas por roubo (127), tráfico (6), homicídio (44), furto (13), porte de arma de fogo (5) e outros (44), das quais 140 eram internações. Entretanto, de 2010 a 2013 houve um aumento de 8,4% de internação, e de 2013 a 2016 houve um aumento da ordem de 70,7%, saltando de 99 casos em 2013 para 140 em 2016. No que diz respeito ao perfil sociodemográfico dos adolescentes postos em privação de liberdade, são pessoas com baixa escolaridade e pertencentes a famílias com renda menor ou igual a um salário mínimo.


Esses dados chamam a atenção, tendo em vista que a relação entre crime e pobreza talvez possa ser encontrada, considerando-se que no estado a situação do ato infracional pode ser agravada pela situação de pobreza histórica que tem se perpetuado, em que ano após ano o Piauí tem tido um dos menores Produtos Internos Brutos (PIB) per capita do país, o mesmo ocorrendo com a sua capital, Teresina, que fica entre as capitais brasileiras de menor PIB per capita. Com um Produto Interno Bruto (PIB) per capta de R$ 12.890,25 (doze mil oitocentos e noventa reais e vinte e cinco centavos), o estado do Piauí ocupa a 21ª (vigésima primeira) posição dentre os 27 estados da federação. Por sua vez, com um total aproximado de 711 mil alunos matriculados na Educação Básica em 2017, o estado ocupa o 17º (décimo sétimo) lugar dentre os estados brasileiros, e possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,646. Todavia, o estado do Piauí possui na população de 15 a 29 anos de idade, um montante de 27,2% dos jovens nessa faixa etária que não trabalham nem estudam.


Uma pesquisa em um estado desigual

Não obstante, a condição de perene pobreza não é comum a todos os piauienses, haja vista a elevada desigualdade social existente no Estado. Dados do IBGE mostram que em 2000, o índice de Gini da renda domiciliar per capita para o Estado e para a capital eram, respectivamente, 0,6587 e 0,6514, tendo reduzido para 0,6193 e 0,6171 em 2010. No Brasil, para esses mesmos anos, esse índice caiu de 0,6460 para 0,6086 e para o Nordeste o índice para esses anos foi de 0,6682 para 0,6277, o que comprova que a desigualdade social no Piauí contribui para elevar os índices nacional e regional.


Assim, inicio neste mês de agosto de 2019 um projeto de pesquisa em parceria com várias universidades brasileiras, latino-americanas e europeias acerca do Curso de vida e trajetória delinquencial: um estudo exploratório dos eventos e narrativas de jovens em situação de vulnerabilidade, e se centrará na seguinte questão: quais os efeitos do cumprimento das medidas socioeducativas no curso de vida e na trajetória escolar de jovens em conflito com a Lei no Centro Educacional Masculino do Piauí?

Como corolários a esta questão, seguem:

"Como os adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas no Centro Educacional Masculino do Piauí percebem suas trajetórias de vida, escolar e institucional? " "Quais os fatores ou processos de proteção são necessários ou eficazes contra o envolvimento dos adolescentes na prática infracional? " Quais os fatores subjetivos favorecem a entrada, permanência ou desistência dos jovens no mundo do crime?

Como hipótese central, tem-se que as medidas socioeducativas cumpridas pelos jovens no CEM têm pouco impacto no sentido de fornecer recursos simbólicos que favorecerão a desistência do jovem de sua trajetória delinquencial. Além disso, levantam-se as seguintes hipóteses secundárias: os jovens que cumpriram medidas socioeducativas no CEM possuem uma percepção depreciativa acerca de sua trajetória de vida, escolar e institucional, o que dificulta seu processo de inserção e reinserção social; os fatores de proteção eficazes contra o envolvimento dos adolescentes na prática infracional são invenções particulares e o território no qual esses jovens vivem ou circulam oferecem poucos recursos para o enfrentamento aos agravos sociais.

Desse modo, gostaria de contar com a participação de todos os interessados na situação de jovens em privação de liberdade para estudarmos a temática e, posteriormente, discutirmos formas eficazes de redução dos casos de reincidência. 

Cássio Eduardo Soares Miranda - Psicanalista
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