A arte de amar e de fingir: as visadas discursivas ovidianas

17/01/2021

Contemporâneo ao Kama Sutra surge, em Roma, A arte de amar, de Ovídio, com evidentes características de poema didático. Como se sabe, em linhas gerais, a denominada poesia didática tem por finalidade ensinar alguma coisa, seja no campo da ciência, das artes, da cultura ou da moral. Com raízes na literatura produzida pelos chamados povos primitivos, ela tinha como alvo facilitar, pelo ritmo e pela rima, a assimilação, a compreensão e a acomodação de dadas verdades (FERNANDES, 2012). 

Como uma espécie de um Zeitgeist da época, os escritos ovidianos em muito se assemelham no conteúdo, ao Kama Sutra, ambos podendo ser qualificados como narrativas que ensinam a arte de fingir no amor. O que denominamos de "arte de fingir" refere-se a um conjunto de estratégias e artifícios amorosos utilizados por homens e mulheres para conquistarem seus parceiros/as. O que importava era o estabelecimento de um modo de vida, pelas "elites", fundamentado em uma ética do prazer, em que o amor ficava em segundo plano, pois representava uma espécie de "despossessão". Assim, "fingir no amor" era criar estratégias de conquistas em que se fazia uma aparência de amar, mas que não passava de um jogo de máscaras estabelecido. Em nossa perspectiva, Para tanto, basta ver a quantidade de material apresentado em congressos, simpósios, seminários e encontros de Análise do Discurso nos últimos anos para se ter uma ideia de como o discurso sobre a mulher em revistas femininas tem sido tomado como objeto de estudo.  O Kama sutra e A arte de amar possuem uma grande semelhança discursiva: ambos se utilizam de estratégias semelhantes para o ensino, que são uso de máximas, citações de autoridades, uso de oposições e um tipo de discurso que se assemelha à literatura sapiencial. Podem-se encontrar semelhanças com os escritos de Salomão, o sábio de Israel ou ainda com os sábios essênios, ou ainda com um modo bastante semelhante aos discursos de Jesus Cristo.   sustentamos que temos em Vatsyayana e em Ovídio o estabelecimento de um gênero que se funda no espírito de um tempo e deixa, fenomenologicamente, rastros que podem ser tomados não como regras, mas como princípios norteadores de leitura. Segundo Charaudeau (2004), um gênero se funda também em um aspecto da ancoragem social e se une a uma multiplicidade de práticas sociais que se enraízam em uma dada sociedade. Tais práticas podem ter referências reais que garantirão a troca verbal e, ainda, um campo simbólico em que as relações sociais são estruturadas. Mesmo que uma concepção de ancoragem social apresente problemas, é importante ressaltar que o sujeito falante só se constitui enquanto um sujeito inscrito nas trocas verbais a partir das referências sígneas nas quais ele se inscreve. Assim, tanto em Vatsyayana quanto em Ovídio, embora distantes do espaço, tem-se uma memória dos discursos "na qual são construídos saberes de conhecimento e de crença sobre o mundo" (CHARAUDEAU, 2004, p. 19). São estes discursos que garantem o surgimento de uma representação e criam as comunidades discursivas. 

Sendo assim, na comunidade discursiva do ensino da arte de amar, pode-se dizer também que existe a arte de fingir enquanto um componente do jogo da sedução. Se o Kama Sutra ensina as regras do amor e do desejo, ele ensina também o fingir como uma estratégia para conquistar o objeto amado. Se Ovídio ensina a Arte de Amar, ele ensina também a arte de fingir . É oportuno salientar que o relacionamento entre os amantes se torna um "serviço amoroso" semelhante ao serviço militar em que, uma vez tendo vencido uma batalha, o soldado recebe a recompensa pelo seu esforço e por sua luta. Segundo Ovídio, a recompensa como fruto da batalha só advém quando o amante domina a arte de amar e aquele que não a conhece deve aprender: "Se alguém deste povo desconhece a arte de amar, que leia este poema e, uma vez por ele instruído, ame" (2007, p. 23). Para o escritor latino, qualquer pessoa que se guiar corretamente por suas instruções, obedecer a suas propostas, seguir suas orientações, receberá, como galardão, seu objeto amado. 

Da mesma maneira, em uma relação interdiscursiva, o Kama Sutra faz tais convites, orientações, sugestões e coloca-se como o livro da sabedoria que conduzirá ao amor. É oportuno destacar que o interdiscurso se refere a um agrupamento de unidades discursivas que mantêm uma relação explícita ou implícita com um discurso particular. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004a), para existir a interdiscursividade é necessário que as unidades discursivas pertençam a discursos anteriores do mesmo gênero ou, se contemporâneos, de outros gêneros. Alguns enunciados demonstram isso: 

Quaisquer que sejam as carícias feitas por um dos amantes no outro, o mesmo deve ser feito em retribuição, ou seja, se a mulher beijar o homem, ele deve beijá-la, se ela golpeá-lo, ele deve também golpeá-la em retribuição. (p. 71). 

Em matéria de amor, o homem deve praticar aquilo que for agradável às mulheres de diferentes origens (...) entre as práticas mencionadas, ou seja, abraços, beijos etc., as que aumentam a paixão devem ser praticadas primeiro e as que destinam apenas ao divertimento ou à variedade devem ser praticadas depois. (p. 78- 9). 

A pessoa criativa deve multiplicar os tipos de união imitando os hábitos de distintos animais e pássaros. Esses diferentes tipos de união, praticados de acordo com os costumes de cada país e com as preferências de cada indivíduo geram amor, amizade e respeito no coração das mulheres. (p. 85). 

Assim, Ovídio refere-se, ao lado do Kama Sutra, a uma obra que possui uma visada de incitação6 explícita e por isso pode ser colocado na categoria de manual. De acordo com Charaudeau (2004, p. 23), uma visada corresponde a "uma intencionalidade psico-sócio-discursiva que determina a expectativa (enjeu) do ato de linguagem do sujeito falante e, por conseguinte da própria troca linguageira". Isso implica que a visada se encontra do lado da instância de produção em função de uma construção idealizada que o sujeito comunicante faz de seu destinatário. No entanto, ela deverá ser reconhecida pela instância de recepção e assim propiciar a interação verbal. De modo mais específico, a obra investigada inscreve-se, pois, em uma visada de incitação, pois "eu quer 'mandar fazer' (...), mas, não estando em posição de autoridade, como no caso da prescrição, não pode senão incitar a fazer; ele deve, então, 'fazer acreditar' (...) ao tu que ele será beneficiário de seu próprio ato"... (CHARAUDEAU, 2004, p. 23). Para tanto, o eu utilizará de sedução ou persuasão a fim de que o tu acredite que sua ação retornará em seu próprio bem. Embora seja uma visada dominante, o livro ainda apresenta uma visada de demonstração, em que eu se propõe a estabelecer a verdade através de provas, a partir de uma posição de autoridade de saber, como cientista, especialista, iluminado, como faz Ovídio ao apresentar-se como o Arauto do amor, como aquele que recebe da própria Vênus as orientações para escrever sua arte. 

As visadas são selecionadas pelas restrições impostas no e pelo contrato de comunicação. Assim, cada situação de comunicação engendrará uma ou mais visadas. Nesse sentido, o discurso literário pode convocar uma visada de instrução - quando escrito por uma autoridade religiosa, por exemplo -, de incitação - como são os casos analisados -, de demonstração - quando os especialistas são convocados ou quando os autores constroem um Ethos de expert -, ou ainda de informação, quando se quer esclarecer ou informar. Como se vê, uma situação de comunicação pode convocar várias visadas. 

Nos três livros que compõem A Arte, parece que Ovídio reconcilia os dois sexos e dá à mulher participação e iniciativa neste jogo sério e leviano que é a conquista amorosa. Em sua estrutura, há o primeiro livro que trata do modo como os homens podem conquistar a mulher amada e lhes transmite os ensinamentos mais eficazes na arte de seduzir. Assim, esse livro ensina aos homens como se dirigir às mulheres, quais as palavras adequadas para o galanteio e ainda os artifícios mais convincentes, como, por exemplo, o uso da promessa e o fingir: 


Tens de agir como apaixonado, e tuas palavras devem dar a sensação de que estás perdido de amor; lança mão de todos os meios para persuadi-la. E como toda mulher se julga digna de ser amada, ser-te-á fácil ser acreditado; e mesmo que seja feia, valoriza a própria beleza (p. 47). 

Ou seja: o autor coloca a mulher no lugar de "caça" e revela onde ela poderá ser alcançada; assim, o amor, ou mesmo uma diversão, poderá surgir. 

O segundo livro diz respeito à manutenção do amor, ou seja, o que fazer para em como manter o objeto conquistado, enquanto que o terceiro livro é direcionado às mulheres que desejam conquistar seu amado. De modo mais específico, o último livro ensina como as mulheres conquistadas podem agradar aos homens, através de "estratégias de fingimento", cuidados com a beleza e higiene, disfarce dos defeitos contrários aos ideais de beleza romanos, como usar a voz e o olhar para seduzir e, ainda, em como obter relações extraconjugais sem ser descoberta. Finalmente, Ovídio ensina posições sexuais que se adequam melhor à estatura da mulher e também posições que contribuirão para um melhor alcance do orgasmo: 

Que a mulher sinta o prazer de Vênus abatê-la até o mais profundo do seu ser, e que o gozo seja igual para ela e para o seu amante. Que não se calem nunca as palavras de carinho e os doces murmúrios, entremeados de palavras lascivas. Desventurada a mulher cujo órgão - que deveria proporcionar prazer para ela e para o homem - permanece insensível! (p. 108).

Àquela que foi negado o "prazer do amor" o poeta orienta: finja! 

Tens de agir como apaixonado, e tuas palavras devem dar a sensação de que estás perdido de amor; lança mão de todos os meios para persuadi-la. E como toda mulher se julga digna de ser amada, ser-te-á fácil ser acreditado... (p. 47); 

Lágrimas também são úteis; com elas amaciarás até o diamante. Cuide para que a tua amada veja o pranto no teu rosto. Se as lágrimas te faltarem (porque nem sempre obedecem à nossa vontade), molha os olhos com as mãos. (p. 48); 

Se, porém, queres conservar o amor da tua amiga, faze-a acreditar que estás maravilhado com sua beleza (p. 64); 

Desse modo, o que se verifica é o intento de Ovídio em ensinar sua Ars amatoria e transformá-la em uma poderosa ferramenta para conquistar o objeto amado. De modo, talvez para alguns leitores, despudorado, seu ensino centra-se na lógica da conquista, ainda que para isso o conquistador se utilize de estratégias de simulação e de serviço militar. Conforme destaca Duque (2016), em Ovídio os amantes são postos na categoria de soldados do exército, obedecendo, porém, ao general Cupido. Nota-se, de fato, uma série de aproximações entre o ofício do amante e o do militar: ambos são exclusivos dos jovens; no exercício de suas atividades dormem pouco; enfrentam, eventualmente, longos deslocamentos; as duas atividades, por vezes, exigem vigília à porta e a separação pela distância. Ademais, verifica-se o uso lexical bélico-militar: as insígnias, o acampamento militar e as armas utilizadas para ferir os inimigos, além das flechas afiadas.  

É certo que as visadas descritas acima são capazes de construir um ethos do enunciador que aqui, conforme estamos tentando demonstrar, é daquele conquistador que conhece bem as táticas e estratégias de conquista.

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Cássio Eduardo Soares Miranda - Psicanalista
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